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Relato da Paula para a Expedição Onça Parda, 03 e 04 de agosto de 2019

Foram 100km, sendo 20km de bike + 10km de trekking + 12km de remo + 50km de bike + 8km de trekking, nessa ordem.

Caros atletas, até tentei elaborar um relato mais técnico, com as informações sobre a prova, mas não consegui. Meu relato sempre acaba sendo mais... transcendental, porque assim é a minha vivência em uma corrida de aventura. Posso não ter a habilidade de relatar para vocês as informações técnicas da prova, mas contribuo relatando minha percepção da experiência, que não deixa de ser também a realidade de uma corrida de aventura. Então vamos lá.

Os atletas iam enfrentar um desafio a mais nessa expedição: o frio. A previsão para o fim de semana da prova era da madrugada mais fria do ano, com temperaturas negativas, chegando à sensação térmica de -5ºC (previsão que se concretizou).

O quarteto que representou Os Pamonhas era formado pelo Roberto, Gledson, Rafael, e Paula.

Na véspera da prova nos encontramos na casa do Gledson. Thiago também estava lá, com toda a sua energia e alegria para pegar a estrada com a gente e correr a prova em dupla, também pela equipe Os Pamonhas (inclusive, ele e seu dupla Barata fizeram o primeiro lugar geral da prova – em metade do tempo que nós). Em um determinado momento, enquanto eles estavam arrumando as bikes na carretinha, eu ouvi ele falando “Ih, cortou!” “Cortou o que Thiago?” “Cortei o freio aqui da bike da Paula sem querer” Ufa, era só brincadeirinha... mas mal sabíamos nós que algo parecido – porém real – iria acontecer antes da prova.

Antes de pegar a estrada, a Nah, esposa do Gledson, nos ofereceu uma seleção de cafés gourmet e muitas palavras e sentimentos de incentivo à equipe. Equipe pronta, tudo preparado, e partimos para Guarapuava.

No sábado, fomos os primeiros a chegar no local da largada. Momento de tirar as bikes da carretinha, e foi aí que o “Ih, cortou!” do Thiago se concretizou: Roberto estava usando um canivete afiadíssimo, que acabou cortando o pneu da minha bike.

Ainda bem que tínhamos tempo para providenciar outro. Enquanto isso, eu vi uma daquelas bikes tipo barra circular encostada em um canto, e brinquei “Gente, qualquer coisa eu empresto essa e vamos!” Mal sabia eu que pedalar a prova com uma bike sem marcha era mais uma previsão que viria a se cumprir.

Pneu novo providenciado para mim, todos os outros pneus checados e calibrados, tudo ok, às 14h foi dada a largada!

500m de pedal, Rafael me chama “Paula, tem alguma coisa no meu pneu traseiro?” “Bom... na verdade não tem: ar! Tá vazio!” Equipe Os Pamonhas para, e lá se vão todas as outras naquele ritmo frenético de começo de prova, enquanto retornamos para o local da largada para trocar a câmara.

Ok, voltamos, segue a prova.

20km de bike, sem maiores contratempos além da constatação de que nosso capitão era um ciborgue-justiceiro-incansável e a gente tava ferrado pra acompanhar ele.



10km de trekking, sem maiores contratempos além da constatação de que estar imersa na natureza é pura energia. Especialmente em um vara mato, que inclusive nos retribui com o mesmo carinho ou agressividade com que nos deslocamos. Se vamos rápido, passando por cima de tudo, recebemos a agressividade dos arranhões e pancadas. Se vamos com cuidado, tentando causar o menor dano, recebemos o carinho de todas as sensações táteis, olfativas e visuais que estão ali. E se enxergarmos além da realidade visível, teremos a certeza de que seres elementais habitam esses lugares e estão ali nos vendo passar. Acho que o Gledson sabe disso, pois ele falou algumas vezes sobre duendes. Mas ele nunca admitiria que viu um. E eu nem perguntei, porque não gostaria de ouvir ele negando.



Com 4 horas de prova, chegamos na transição para o remo. Os outros quartetos estavam ali, então o tempo perdido com o pneu do Rafael não tinha nos prejudicado em nada. Rapidamente pegamos os ducks e entramos na água. E só dentro da água percebemos: o duck não estava completamente cheio.

Volta pro AT, enche o duck, recomeça o remo.

Ainda era dia, mas logo escureceu. Até então, o frio não tinha incomodado. Comecei a bater o queixo assim que a noite caiu, isso somado ao contato com a água gelada nas inúmeras portagens que foram necessárias, pois o rio estava baixo. Durante esse remo, eu vivenciei a neblina se formando em cima do rio. Começou com pequenas nuvenzinhas espaçadas, aqui e ali. Em alguns lugares, eram mini furacõezinhos de neblina, que subiam da água para cima.



Mesmo tentando me distrair com a natureza, foram 2 longas horas de remo, com muito frio, e sem parada. Eu sabia que isso ia acabar, e uma roupa seca me esperava na área de transição. Chegando no AT, um apoio do exército aguardando com fogueiras para aquecer os atletas, e pão para nos alimentar.



Roupas trocadas, aquecidos, alimentados e com novos suprimentos, às 21h seguimos para a segunda e última perna de bike. Uns 5km depois, eu empolgadona em um subida, e pá: do nada meu pedal travou e parou de girar. “Galera, peraí que deu um problema aqui que eu não sei resolver”

Quando viram qual era o problema (entortou e quebrou alguma coisa), capitão falou muito triste “Acabou a prova” Eu respondi “Não, a prova não vai acabar agora, ainda não é a hora! Capitão, ainda não é a hora de acabar.” E falei isso com tanta verdade e vontade, que ninguém mais questionou se continuaríamos ou não. E a gente ia ter que aprender algum tipo de mecânica de bike ali, na marra. Gledson apareceu com um power link, e juntando um pouco do conhecimento de cada um, a bike foi “consertada”. Na verdade, uma peça (que até agora eu não sei o nome – cavalinho, talvez) foi retirada e eu teria uma única marcha para fazer os próximos 45km.

Eles ficaram tensos, até mais do que eu, pois a corrente estava super mega tensionada e travada em uma marcha que não era leve – e teríamos ainda muitas aventuras e subidas noite adentro.

Segue a prova, eu com a minha barra circular que desejei antes da corrida começar. Parabéns.

Em um determinado momento, uma parada para confere no mapa. Vejo ao longe uma iluminação diferente, parecia um farol. Chamei a atenção deles para isso: o que era? Os quatro ficaram olhando, tentando entender o que era aquela luz estranha. “Ei, parece que essa luz estranha viu a gente e está se aproximando...” “A luz tá chegando aqui, mas da onde tá vindo isso???” “Meu Deus, iluminaram a gente!!!” E o Gledson diz “Calma, mas a fonte dessa luz não tá vindo desse lugar pra onde a gente tá olhando, tá vindo de trás!”

Viramos. Pausa. A fonte da luz tava ali, alguns metros atrás da gente! Ela se aproximou enquanto estávamos de costas! Silêncio com um pouco de terror. A luz pergunta “Quem tá aí?” Ninguém respondeu. Terror com um pouco de não sabemos o que responder para o ET Bilu (se não sabe quem é, para de ler agora e dá um google rapidinho. Sério, vale a pena – e o vídeo do youtube até serve como recurso audiovisual para imaginar esse momento com mais emoção. E se já viu, vale a pena ver de novo).

“Quem tá aí???” Ele insistiu... nenhum de nós se movia um centímetro, e eu quase nem respirava mais, pro Bilu não me ouvir. Nosso capitão respondeu “Estamos fazendo uma corrida de aventura” E o Bilu (que também podia ser um dono de propriedade armado, e nervoso com nossa invasão em suas terras no meio da madrugada) depois de uma pausa que pareceu muito longa, perguntou “Qual equipe?” Ufa, que alívio... rapidinho me liguei que era a equipe Chauá, também procurando o caminho para um PC.

Eles não ficaram muito tempo por ali, e optaram por seguir um rumo. Nós seguimos um rumo oposto, e nosso capitão acertou na mosca, levando a equipe direto para a trilha que precisávamos pegar.

Ah, e tivemos mais um contratempo com bike: o rolamento da bike do Roberto detonou. Mas tudo bem, ele continuou agindo normalmente como um ciborgue. Era até engraçado, quando ele começava a ir mais rápido (principalmente no trekking) a gente nem falava nada, só se olhava e pensava “Ferrou, vamos ter que ir mais rápido...”

Outro momento, outra parada básica para o capitão dar um confere no mapa. Enquanto isso, comentei com o Gledson sobre o cheiro de carniça que eu estava sentido, aproveitei e contei que vi uma cabeça de vaca dentro do rio enquanto tava remando, e sobre uma macumba que eu tinha visto antes, com uma carcaça de bode. Dito isso, comecei a me sentir observada, desconfortável, como se tivesse mais alguém ali no breu, além da equipe... pensei “Será que tem alguma equipe por aqui? Quem tá me olhando?” Mirei a lanterna para um lado: mato. Para o outro: muro.

De cemitério. Pausa. “Gente, desculpa aí, mas eu acho melhor a gente pegar logo essa estrada aqui e parar em um outro lugar, porque aqui não tá legal.” “Ué Paula, por que?” “Cemitério” falei e saí pedalando... e eles também saíram rapidinho logo atrás.

Durante esses 50km de bike subimos muito. Tanto, que nem precisava mais olhar para o céu para ver as estrelas, elas estavam ali na nossa frente. E com um céu muito limpo, característico do inverno, eram milhões e milhões de estrelas na altura dos nossos olhos, para deixar nossa noite congelante ainda mais especial. E, claro, às vezes éramos presenteados com as estrelas cadentes, que pareciam fogos de artifício ao contrário, caindo do céu.

E bem lá no alto, congelamos. Senti tanto frio, que me enrolei no cobertor de emergência, e pedalei com ele até amanhecer. Aguardávamos confiantes a chegada do amanhecer, para nos aquecer. E quando começou a amanhecer, foi possível ver o nível de geada a que estivemos expostos. Até então, só ouvíamos como um crec-crec de gelo quebrando nas rodas das bikes.

Com a leve iluminação do início do dia, a geada estava linda... ela não era só simplesmente branca como neve... ela brilhava! Incrivelmente, parecia que quilos e quilos de gliter branco tinham sidos jogados sobre tudo pelo nosso caminho durante a noite.

Mas eu descobri uma coisa nova, e doeu muito: descongelar dói mais do que congelar... Dói muito, é quase insuportável, tanto, que chorei! Sim, a cena agora é eu pedalando num cenário lindo, descongelando igual ao rio com pedacinhos de gelo, e chorando de dor. O choro também foi um pouco por medo dessa sensação que foi nova para mim! Os meninos não choraram, mas sentiram muito também. Os nossos dedos estavam duros e a sensação de dor, com pontadas, foi sentida por todos. Acho que o capitão sentiu menos, por ser ciborgue né, normal.



Pela manhã, lá pelas 9h, fizemos a última transição. Tivemos novamente acesso a suprimentos, trocamos de meias mais uma vez (teve trecho na bike com transposição na água, então os pés estavam molhados). Comemos e... segue a prova. Sem pensar muito, porque se parar para pensar em área de transição, a vontade de ficar ali onde tem o mínimo de recursos e conforto, é grande.

Saímos para o trekking, meio que capengando. Pernas travadas pelo cansaço, frio, e até fazer elas entenderem que estávamos mudando de estímulo, capengamos mesmo.

De repente, um pequeno rio a ser atravessado. Coisa de uns cinco passos na água. Capitão passou direto. Eu estava atrás dele, parei. Gledson me passou e atravessou. Rafael me passou e atravessou. E aí eu fiquei dramática “Não! Eu não vou molhar meu pé de novo. Cansei de pé molhado, acabei de colocar meia seca, e não tenho mais meia pra trocar. Parei. Não vou.” E o pior é que eu estava falando sério. Foi mesmo um momento teimosa, do qual me envergonho. Não sei da onde eu tirei o drama de molhar o pé depois de tantas outras coisas mais desafiadoras, mas... eu realmente não quis naquele momento.

Super contrariada, eu estava me abaixando para tirar os tênis e as meias e atravessar descalça quando Gledson, com sua habilidade de resolver problemas rapidamente, sugeriu que eu fosse carregada, para agilizar. Rafael voltou, com a água na altura dos tornozelos, me jogou nas costas, e me carregou. Me senti aquelas menininhas birrentas, que tem que ser carregadas enquanto ficam fazem mimimi. É, eu era uma menininha birrenta sendo carregada enquanto fica fazendo mimimi. Não tenho dúvida alguma que ele carregaria o Roberto e o Gledson também, se fosse necessário. E fiquei com muita vergonha pela minha atitude boba de não querer molhar os pés no fim da prova, e ao mesmo tempo agradecia muito por ter a possibilidade de mantê-los com um mínimo de conforto, justamente no fim da prova.

Nesse último trecho, não estávamos mais conseguindo correr, o progresso estava lento. E assim, andando, eu comecei a refletir sobre o nome da corrida...Onça Parda. Então provavelmente isso significa que... é uma região onde tem a onça... e isso significa que se a onça aparecer, estamos ferrados com essas pernas travadas!

Pensando bem... só um de nós estaria ferrado. Lembrei daquela historinha dos caras que estavam fazendo um safari na África quando são surpreendidos por um leão. Um deles começa a tirar as botas, e o outro pergunta por que? Ele responde “Descalço eu corro mais rápido” “Que bobagem, você nunca vai correr mais rápido que um leão” “Mas eu não preciso correr mais que o leão... só preciso correr mais que você!”

A onça parda não apareceu. Mas, de qualquer forma, sobrevivemos ao ataque dela, durante as 23 horas de prova, que nos renderam o segundo lugar entre os quartetos. Foram 23 horas vividas intensamente, em todos os mínimos detalhes, com muita gratidão à natureza, à vida, e à todos os envolvidos.



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